22 setembro 2005

Crash - No Limite (Paul Haggis, 2005)

Paul Haggis, mais conhecido como o roteirista do belo “Menina de Ouro”, aposta em sua quase-estréia como diretor de longa-metragens para cinema – é dele também o desconhecido “Red Hot” – em uma fórmula bastante simples para tentar atingir tanto as estatuetas do Oscar quanto os corações do público. A mistura é a seguinte: junte o estilo cinema-painel de denúncia de problemas sociais urgentes, contado dentro dos mais diversos pontos-de-vista – a la “Traffic” – com o estilo cinema-painel de coincidências do destino, dramas psicologizantes e artimanhas narrativas – a la “Magnólia” – e teremos o que de melhor foi feito no cinema americano dos anos 90. Não bastasse almejar ser esse produto requentado de más referências, que já não gera em si grandes expectativas, “Crash” ainda conta com o problema de ser grosseiramente dirigido – por mais que tente copiar os “truques” de fotografia e edição dos ídolos Soderbergh e Paul Thomas Anderson – e, por incrível que pareça, vindo de alguém com uma carreira digna no ramo, pessimamente roteirizado – os furos de roteiro e os exageros narrativos saltam aos olhos -.

Partindo de uma meia-hora inicial digna do pior Sergio Bianchi – ó só crianças, vamos apresentar os personagens mostrando como o preconceito está incrustado em todos os ramos da sociedade, sempre com cenas chocantes e surpreendentes -, Haggis decide, então, “humanizá-los”. Mas, para o pensamento simplista do diretor, humanizar os personagens também pode ser reduzido a uma nova receita de cozinha. Junte uma cena má – digamos, o policial bolinando uma negra – e uma cena boa – o mesmo policial salvando, depois, a vida de mesma negra, em uma seqüência tão inverossímil quanto constrangedora – e pronto!, temos aí um personagem complexo. É só adicionar um drama familiar – quem sabe o pai deste policial é um aposentado honesto e doente que perdeu o emprego por causa dos (tchanans!) negros? – e nasce um papel digno dos melhores criados por Shakespeare. Pior do que tal construção, porém, é a noção pré-concebida – logo num filme sobre preconceito! – sobre o que de fato é bom e o que de fato é mau, criando, a partir do que seria uma obra sobre o modo como o preconceito está presente em nossas vidas, uma fábula moralista de pecado/redenção: os que começam “maus” indo do primeiro caminho para o segundo, os que começam “bons” fazendo o percurso inverso. E tome mais seqüências constrangedoras: a mulher rica abraçando a empregada e dizendo que ela é sua única amiga – esta, aliás, constrangedora e reacionária -, o filho ajudando o pai a mijar, o árabe dizendo que a menina que ele não conseguiu matar é um anjo, os “i love yous”; a lista é imensa...

Nessa profusão de ingredientes, ao tentar amarrar as pontas o diretor só se complica. Boa parte dos personagens precisa de um drama familiar para se “sustentar” e causar envolvimento com o público – o número de seqüências em que a música sobe de forma melodramática aleatoriamente para causar lágrimas não é pouco -, mesmo que esse drama entre em contradição com o cinema de denúncia ao qual Higgis se propõe no início da narrativa – como, por exemplo, na seqüência em que Don Cheadle xinga a mãe apenas para iniciar uma discussão paralela sobre o (oh!) preconceito contra mexicanos nos EUA, seguida de outra cena na qual ele a trata com enorme carinho e afeto, junção essa que, mesmo pertencente ao paradigma de construção bom/mau sempre presente no filme, não faz o menor sentido -. Dessa forma, qualquer espécie de debate sério é invalidado, realçado pelo fato de todos os personagens terem de se encontrar coincidentemente no mínimo umas três vezes com outros, dando a impressão que a pequena cidade de LA tem mais ou menos uns dez habitantes.

Assim, ao reunir todos os elementos possíveis – frases de efeito, discussão “completa” sobre um tema, construção “profunda” de personagens, estudo sobre megalópoles americanas, tragédia grega – em um filme de mais ou menos duas horas, Haggis mostra-se incapaz de fazer uma obra que mereça mais de cinco minutos da atenção do espectador, preso em um cinema preso em si mesmo, sem chance de fuga, perdido no meio de tantas intenções. De tudo resta a certeza – e daí o filme adquire seu verdadeiro valor- de que há de ser um gênio para transformar “Menina de Ouro” na pequena obra-prima que é. A falta total de aptidão de Haggis para fazer um filme de mínima serventia é, antes de qualquer coisa, a comprovação – como se fosse necessário - do domínio cinematográfico de Clint Eastwood. E, dito isto, fica claro que o desastre de “Crash” não merece nem mais uma linha do texto e tampouco um segundo do leitor.