27 setembro 2005

O Mundo (Jia Zhang-ke, 2004)

Qualquer crítica, ou estudo, que se preze não pretende – nem é capaz – de esgotar os significados de um filme (e se for, é porque o filme é muito ruim). Parte de um recorte disponível – entre tantos – sobre uma obra com o intuito de desenvolvê-lo apropriadamente. Esta breve introdução tem a intenção de dizer que, no caso de O Mundo, filme extremamente complexo, o recorte escolhido não tem a intenção de excluir qualquer outra visão sobre essa possível obra-prima. Estudo pertinente sobre os mais diversos temas: situação política chinesa, relacionamentos, identidade, comunicação...poderia também receber uma crítica sobre cada um deles. Deixo, portanto, que outros as façam e analiso o que a obra significou para mim: o sentimento de prisão e de falta de intimidade em um mundo cada vez mais tecnológico e globalizado, sentimento este que faz de O Mundo um filme com enormes semelhanças em relação a outra possível obra-prima deste festival, Last Days.

Na primeira seqüência, belíssima, do filme – na qual a protagonista Tao corre em busca de um curativo para seu pé, sendo solenemente ignorada – já estão ali contidos os elementos que serão desenvolvidos ao longo da narrativa: a busca de uma “cura”, uma solução, uma fuga, em um ambiente asfixiante e prisioneiro no qual o imenso número de pessoas é inversamente proporcional à quantidade de comunicação trocada. Tal ambiente é denominado O Mundo, parque no qual Tao trabalha e vive, onde estão contidas réplicas das principais situações geográficas e monumentos de nosso globo terrestre. O nome do local onde se passa a narrativa funciona não apenas como síntese de uma “globalização” mundial – na qual, como diz o trenzinho, podemos visitar o mundo em quinze minutos – mas também como um pastiche da mesma, afinal a França – assim como qualquer outra região - acaba se reduzindo a uma Torre Eiffel, um Arco de Triunfo e uma igreja de Notre Dame.

A grande sacada de Jia Zhang-ke, porém, ao configurar o Mundo como metáfora do mundo e centrar sua narrativa neste espaço reduzido é perceber que, se se trata de um parque, com suas barreiras físicas e policiais, se trata, portanto, também de uma prisão. Uma prisão não apenas no que se refere aos elementos citados na linha anterior, mas também em questões muito mais sutis: a presença da vigilância tecnológica através de câmeras mas, principalmente, dos celulares – instrumento de controle importantíssimo ao longo do filme – e a dominação do espaço público, invadindo e se estabelecendo dentro do particular. Nesse sentido, o cinemascope, a banda sonora e a opção de filmar praticamente em planos-sequências exercem papéis fundamentais. Em nenhum momento, as pessoas estão sós. Seja o som entrando nos recintos e quartos – e são realmente raras as cenas nas quais os únicos barulhos ouvidos sejam os fabricados pelos personagens, ou mesmo apenas dos objetos que estejam em cena -, sejam os visitantes ou monumentos adentrando a suntuosidade dos planos e tomando a atenção do espectador – em especial a panóptica Torre Eiffel, presente, devido a seu tamanho, em qualquer ponto do parque ou mesmo fora dele -, raramente uma seqüência do filme se resume a duas pessoas conversando, sem que nada mais aconteça em volta das mesmas. Não existe a construção, ou a possibilidade, de um espaço íntimo no mundo. Mundo este que, na ânsia de uma globalização, aliás, apresenta a imposição de padrões como única forma de convívio social. Tal ênfase fica clara não só na seqüência em que Taisheng – o namorado de Tao – reclama de seu amigo falar no chinês padrão, mas naquela em que é pedido a Tao que seja uma africana. No fundo, a moral é de que não há mais diferença entre ser uma africana ou uma chinesa.

Dessa forma, eliminado o espaço íntimo e impedida a construção de uma identidade pessoal, os personagens vagam sem comunicação. Nesse sentido, é especialmente interessante a construção da relação entre Tao e sua amiga russa, Anna – gerando um bom par de seqüências antológicas – na qual uma não consegue entender o que a outra fala (ao contrário do cinema de Manoel de Oliveira). Entretanto, esta é, sem dúvida, a relação mais profunda que se estabelece ao longo do filme, onde as amizades são rasteiras e superficiais (tanto que o namorado de Tao, ao ser questionado sobre uma possível traição, responde a ela para não confiar em ninguém). Assim, a história se constrói a partir das diversas tentativas de encontrar um ponto de fuga, seja físico – os passaportes –, seja sentimental – o amor –, para tal situação. O filme deixa claro, porém, que tais tentativas não passam de uma visão idealizada, simbolizada pela ingenuidade de Tao ao acreditar no sublime de seu relacionamento com Taisheng – os dois, por exemplo, não transam – e no amor entre eles como possível solução.

Há, porém, uma solução, mesmo que trágica: a morte. Seja na seqüência extraordinária em que o personagem “Irmãzinha” deixa o mundo com um bilhete no qual revela não só que dele carregava apenas dívidas – única forma possível de relação – como também seu verdadeiro nome – abrindo um caminho de construção de identidade e libertação -, seja na que Tao, após descobrir a traição de seu namorado, se suicida e leva Taisheng com ela. Após morrer, revela a ele (e não seria absurdo dizer que essa é a “moral” do filme) : é só o começo. É só o começo. Assim nos despedimos da pré-história do mundo moderno.